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PACTA SUNT SERVANDA - Brocardo tardio ou Princípio Geral do Direito?

  • Winicius Mendonça
  • 13 de mai. de 2016
  • 39 min de leitura

Professor Orientador: Flávio Marcelo Bernardes Trombetti

Professor Revisor: Edson Roberto Berbel

RESUMO

Número significativo de magistrados dos tribunais pátrios, em seus julgados em Ações Revisionais de Contratos Bancários, têm pautado suas decisões, destarte os dispositivos legais que lhes facultem intervir nas relações negociais, dentro de insólita zona de conforto: “não visualizo no caso concreto razão plausível para questionar o Princípio do Pacta Sunt Servanda”, afirma um deles; “O contrato firmado foi realizado dentro dos parâmetros fixados pelo mercado, respeitadas as declarações de vontade das partes, de acordo com o Princípio Pacta Sunt Servanda”, declara outro, e assim sucessivamente, em inúmeros vereditos de primeira instância. Bom para bancos e financeiras, de vez que, condenados a recolher as custas de recurso, acabam por desistirem os autores de dar prosseguimento à lide; felizes os réus, ao verem suas pretensões atendidas em evidente cerceamento ao direito de defesa da contraparte.

Conquanto tal posicionamento faculte ao juiz um não enfrentamento do tema (a existência ou não de dispositivos contratuais que, eventualmente, estivessem a ferir normas cogentes à boa fé e ao bom direito), o mesmo não lhes garante que não haja reforma da decisão nas instâncias seguintes, ao contrário. Contudo, estribados numa suposta pacificação de força do brocardo citado, creem estar fundamentando suas decisões em um Princípio Geral do Direito, qual fosse o brocardo Pacta Sunt Servanda.

Nesse contexto, cabe discutir-se se o brocardo em questão, de fato, faz parte dos Princípios Gerais do Direito, recomendados na LINDB em seu artigo 4º para nortear as decisões dos juízes em casos específicos em que a lei, os costumes ou a analogia não sejam suficientes, por se constituírem tais princípios de valores basilares e eternos, por incontroversos, como o são o princípio do contraditório, da boa-fé, da proporcionalidade, da razoabilidade, da ampla defesa, da imparcialidade do juiz, do devido processo legal etc., cada um deles em sua esfera de aplicação.

Consoante a necessidade de entender-se o problema, estudar-se-á as origens do brocardo Pacta Sunt Servanda, a evolução do pensamento jurídico desde então e o contexto atual onde ele se vê inserido, totalmente diverso do que existia na época de sua concepção.

Discutir-se-á igualmente as consequências da utilização indiscriminada desse brocardo nas decisões de primeiro grau, notadamente ao encobrirem com esse procedimento contratos cheios de vícios, quais as cláusulas leoninas mais comuns, as confusões de conceitos matemáticos nos vereditos, as posições doutrinárias sobre o tema, bem como os resultados sociais de arbítrios nos moldes citados, dessarte a consolidada tendência de reforma nas decisões nas instâncias superiores.

Palavras-chave: Pacta Sunt Servanda, vícios contratuais, princípios gerais do direito, brocardos tardios.

SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................... 03

  1. PROBLEMA......................................................................................... 04

  2. JUSTIFICATIVA................................................................................... 04

  3. OBJETIVO............................................................................................ 05

  4. METODOLOGIA................................................................................... 05

  5. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................ 05

  6. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O TEMA................................. 06

INTRODUÇÃO.......................................................................................... 06

  1. PASCTA SUNT SERVANDA: VALORES DOMINANTES NA CONCEPÇÃO

DO BROCARDO........................................................................................ 07

  1. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO – CONCEITO....................................... 09

  2. BROCARDOS TARDIOS – CONCEITO ....................................................... 10

  3. A UNIVERSALIZAÇÃO DO BROCARDO E SUAS CONSEQUÊNCIAS....... 13

  4. A EVOLUÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO FRENTE À QUESTÃO..... 14

  5. O CONTRATO E A DESIGUALDADE ENTRE AS PARTES ........................ 16

  6. ANÁLISE DE CASO CONCRETO ................................................................. 20

  7. CONCLUSÃO ................................................................................................. 29

BIBLIOGRAFIA........................................................................................... 30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................. 31

PROBLEMA

Em pesquisa realizada em 01/06/2014 no site jurídico JUSBRASIL, apurou-se 228.167 julgados fundamentados no brocardo Pacta Sunt Servanda, em ações relativas a aluguéis, arrendamento rural, compra e venda de produtos e inúmeros outros pactos. Ou seja, furtaram-se os magistrados em mais de duzentos mil processos de apurarem possíveis irregularidades contratuais simplesmente baseados no pressuposto ideológico do brocardo, sem devida perícia.

JUSTIFICATIVA

A adoção do brocardo Pacta Sunt Servanda como fundamento para decisões de primeira instância, tem promovido grande número de condenações de Autores que, mesmo cientes da consistência legal de suas pretensões, não conseguem arcar com as custas de recursos, aceitando condenações que teriam grandes condições de serem revertidas.

OBJETIVO

Procurar-se-á identificar os motivos que levam os magistrados de primeira instância a julgarem de ofício cláusulas contratuais que impliquem no conhecimento dos resultados do uso de complexas fórmulas matemáticas utilizadas pelo mercado financeiro nos cálculos de obrigações advindas de financiamentos, conquanto estejam a contrariar jurisprudência consolidada dos tribunais estaduais e do STJ, além de sumulas do STJ.

Necessidade de maior celeridade processual? Deficiente formação acadêmica na área de Direito Contratual? Desconhecimento das súmulas do STJ que norteiam as decisões para fatos sociais similares?

METODOLOGIA

O presente trabalho versa sobre a aparente elevação de um arbitrário brocardo tardio, concebido por interesse de determinada parcela da sociedade da época de sua implantação (a burguesia) à condição de Princípio Geral do Direito com o fito de legitimar suas pretensões, tornando assim regras e cláusulas presentes num pacto “normas independentes” de todas as outras disposições presentes nos demais diplomas legais, constituindo um sistema isolado de regras próprias, os pactos, que uma vez consumados, tornar-se-iam indevassáveis, inanuláveis, indiscutíveis.

Ora, tendo por premissa maior, nos julgados favoráveis à inviolabilidade dos contratos, a condição do brocardo Pacta Sunt Servanda ser Princípio Geral do Direito, caso constatada não ser essa sua condição, mas antes a de brocardo tardio e arbitrário (premissa menor), nesse caso, caracterizar-se-ia negação do consequente, e a inviolabilidade dos contratos restaria prejudicada, situação esta a impor aos magistrados obrigação do enfrentamento das cláusulas contratuais, consoante as regras do Código de Defesa do Consumidor, muitas vezes ignoradas ou coarctadas. Assim:

Contratos são invioláveis graças ao Princípio Geral do Direito Pacta Sunt Servanda.

Se o brocardo Pacta Sunt Servanda não for um Princípio Geral do Direito, logo,

Os contratos não serão invioláveis.

Essa a proposição básica do presente trabalho, e que suscitou o método dedutivo “negação do consequente” (Modus Tollens).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Foram adotadas para a sustentação do conteúdo pesquisado, entre outras, os princípios doutrinários e leis abaixo relacionadas:

  • A Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB);

  • O Código de Defesa do Consumidor;

  • O Código Civil (de 1916 e de 2002);

  • Súmulas do STJ

  • A Constituição Federal de 1988.

  • Os Princípios Gerais do Direito

ASPECTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O TEMA

INTRODUÇÃO

A Lei de Introdução ao Direito Brasileiro assim determina: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitando o ato jurídico perfeito”. Desse modo, há que ter-se por incontroverso que, nos contratos de qualquer natureza, a pretensão maior do ordenamento jurídico pátrio da atualidade é a salvaguarda do ato jurídico perfeito.

Sendo pré-condição para a existência do ato jurídico perfeito agente capaz, vontade das partes e negócio lícito e possível, inexistindo uma dessas condições, passa a ser o ato jurídico nulo ou anulável. Se anulável, somente depois da respectiva retificação poderá o mesmo prosseguir em direitos e obrigações corrigidas, ou seja, somente após a intervenção do Estado no pacto o mesmo passará a possuir os requisitos legais, como mencionado.

Como então, admitir-se qualquer dispositivo legal que obste essa intervenção retificadora?

Como podem prosseguir em curso negócios jurídicos irregulares, caso o judiciário faça “vistas grossas” a esses ilícitos, mesmo com as prerrogativas existentes para sua intervenção? Ao furtar-se ao dever de apurar possíveis irregularidades, socorrendo-se no fundamento ideológico de um brocardo, não estaria o judiciário a legitimá-las de forma oblíqua?

Que dizer-se das empresas que, procurando a justiça, veem privados de tutela legal seus contratos sob suspeita, que, não sendo periciados, podem deixar ilesas possíveis ilicitudes mantidas ocultas sob o brocardo Pacta Sunt Servanda por magistrados de primeira instância e que, sem haveres para saldar os 2% de custas processuais de recursos, não dão continuidade à demanda, arcando com uma condenação que tenderia a ser revertida em instâncias superiores de nossos tribunais? São questões relevantes que merecem reflexão.

Temas controversos e complexos, quais sejam vícios ocultos em fórmulas matemáticas, haveriam de ser analisados com o devido cuidado, periciados por especialistas e, somente depois dessas averiguações, poder-se-ia ter os subsídios necessários para o julgamento adequado do mérito, consoante determinação do Superior Tribunal de Justiça, verbis:

STJ Súmula nº 381 - 22/04/2009 - DJe 05/05/2009

Contratos Bancários - Conhecimento de Ofício - Abusividade das Cláusulas

Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.

Sem esses elementos periciais, corre-se o risco de fazer-se “tábua-rasa” de problema sério, em que estão em jogo eventuais falências de empresas, os empregos de seus funcionários e os problemas sociais decorrentes.

Quando da inobservância desses cuidados, podem os magistrados estar permitindo que reste prejudicada a função maior do judiciário e sua razão de ser.

  1. PASCTA SUNT SERVANDA: VALORES DOMINANTES NA CONCEPÇÃO DO BROCARDO

O advento da Primeira Revolução Industrial e a consequente ascensão da burguesia ao poder acabaram por dar contornos ao ordenamento jurídico daquele momento da História acorde os interesses do liberalismo nascente.

Em 1804 o Code Civil des Français, posteriormente chamado Código Napoleônico, primeiro diploma legal a sistematizar o Direito Contratual, procurou definir a liberdade individual de contratar como premissa do Direito Natural, e com isso pretendia que a existência pura e simples desse ingrediente num contrato (a liberdade de contratar) já seria o suficiente para conferir justiça ao mesmo.

Em seu artigo 1.134, a referida norma afirmava “les conventión légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les on fait” (A convenção faz lei entre as partes, em livre tradução) e surgia com este artigo a expressão Pacta Sunt Servanda.

Com esse brocardo, o desejo da classe dominante era a universalização do dogma de que “se alguém assinasse um contrato de livre vontade (e poderia não tê-lo feito), deveria cumpri-lo em seus termos, do princípio ao fim”.

Juntas as duas premissas, de que o contrato fazia lei entre as partes e que devia ser cumprido até o final, selava-se a pretensão burguesa: os contratos tornar-se-iam indissolúveis até seu cumprimento integral, dentro das cláusulas assinadas, já que as mesmas tinham poder de “lei” e ficavam imunes ao poder de intervenção do Estado.

Com o passar do tempo tal premissa passou à condição de verdade absoluta, e conferiu ao brocardo caráter de princípio – a pretensão maior do pensamento liberal.

Hobsbawm e Ranger [1] definiram com maestria como esse processo se consolida em seu livro A Invenção das Tradições:

“Nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públicas de que ela participe. Todavia, segundo um dos capítulos deste livro, este aparato, em sua forma atual, data dos séculos XIX e XX. Muitas vezes, “tradições” que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas. (...) Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado”. Foi exatamente o que ocorreu com os brocardos tardios criados pela burguesia.

Nesse sentido cabe a afirmação de Cesare Beccaria [2] para entender-se como esse diuturno contato com valores burgueses acabou por tornar o brocardo consagrado:

“Todo o ser sensível está submetido ao império do hábito; e, como é este que ensina o homem a falar, a andar, a satisfazer as suas necessidades, é também ele que grava no coração do homem as idéias de moral por impressões repetidas”.

Ainda de Hobsbawm e Ranger o entender que confirma a tese de Beccaria: “O objetivo e a característica das “tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição”.

Dessa maneira, foi legalizada, divulgada e “aceita” (melhor seria dizer-se “suportada”) pela sociedade dos séculos seguintes a pretensão liberal de blindar os contratos diante do poder do Estado: a intervenção judicial nos pactos para coibir eventuais irregularidades, ou cláusulas obscuras que encobrissem intenções dolosas de uma parte a onerarem as obrigações assumidas pela outra ficava absolutamente vedada.

Para compreender-se a real característica do brocardo Pacta Sunt Servanda, se Princípio Geral do Direito ou se mero brocardo tardio e inventado, necessário faz-se separar-se os conceitos, um do outro, definindo-os.

  1. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO - CONCEITO

Princípios podem ser definidos como a base, o fundamento, a razão fundamental sobre a qual se discorre sobre qualquer matéria.

Concorde essa afirmação, Sílvio de Salvo Venosa [3] entende que "os princípios gerais de direito são regras oriundas da abstração lógica do que constitui o substrato comum do Direito".

Congruente esse parecer, principio, segundo Miguel Reale [4], possui duas acepções: a primeira, de ordem moral, e a segunda, de ordem lógica. Naquela se enquadra o sentido ético, para significar as virtudes e as razões morais do homem. A acepção lógica, por sua vez, deve partir da escorreita compreensão de juízo, ou seja, a apreciação qualitativa de algo, até a formulação de uma proposição, nascendo dessa combinação o raciocínio.

Consoante as duas posições doutrinárias citadas, e as outras todas que se pretender elencar, como permitir-se que regra tendente a encobrir possíveis ilicitudes possa servir como um “substrato comum ao Direito”, proposta por Venosa? E como, igualmente, o manto das “virtudes e razões morais do homem” poderiam a ela referir-se?

Como realizar-se, outrossim, a “apreciação qualitativa de algo”, se esse algo, por “acepção lógica”, como prega Reale, permanecerá brindado pela própria regra que o cria? Resta claro que o brocardo Pacta Sunt Servanda parece afastar-se, quanto possível, da própria definição de princípio, como a doutrina entende.

Prosseguindo-se com a visão de Miguel Reale, o ilustre autor assevera que princípios são “verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos” e que “toda ciência, inafastavelmente, funda-se em princípios, e o Direito, como ciência que é, não poderia fugir dessa regra”.

Os Princípios Jurídicos são mais que elementos de segurança jurídica, na medida em que contribuem para conferir ao ordenamento jurídico caráter de conjunto e securidade, tanto no sentindo de propiciar que condutas que se ajustem à justiça não sejam reprovadas pela norma positiva, quanto permitindo resolverem-se situações não contempladas em norma positiva, mas que tenham relevância jurídica.

DE PLÁCIDO E SILVA [5] ensina que “os princípios são o conjunto de regras ou preceitos que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando a conduta a ser tida em uma operação jurídica”.

Assim, pode-se afirmar serem os princípios Gerais do Direito enunciados normativos de valor universal. Representam o núcleo do sistema legal.

São, pois, os Princípios Gerais do Direito as ideias de justiça, liberdade, igualdade, democracia e dignidade que serviram, servem e continuarão servindo de alicerce para o edifício do Direito, em permanente construção.

Como assinalado, os Princípios podem ou não estar previstos no texto legal. Todavia, todos são positivados, na medida em que possuem vigência sociológica.

Inegável que os Princípios Gerais do Direito não somente servem de orientação ao juiz no momento de proferir a sua decisão, como também constituem fundamento ao seu arbítrio. E é exatamente aqui que se encontra o grande perigo para o tema em questão: caso uma premissa tendenciosa consiga insinuar-se maliciosamente na categoria de Princípio Jurídico, pode o juiz entende-la como tal e fundamentar seu arbítrio não em “verdades fundamentais”, ao gosto de Reale, mas em “tradições inventadas”, ao gosto de Hobsbawm e Ranger.

  1. BROCARDOS TARDIOS - CONCEITO

Conquanto pretendesse tirar da nobreza absolutista qualquer credibilidade de modo a enfraquecê-la, não abriu mão a burguesia, no entanto, dos métodos absolutistas de manutenção do poder. Em verdade, apenas desta tomou o lugar. Para que seja possível entenderem-se as razões do aparecimento dos brocardos do início do período moderno, necessário faz-se auscultar o pensamento vigente à época de seu surgimento, a transição do sistema absolutista para o sistema liberal.

A ideologia absolutista, hodierna desde o século XVI, segundo Nicolau Maquiavel relata na obra “O príncipe”, defendia o Estado como um fim em si mesmo, afirmando que os soberanos poderiam utilizar-se de todos os meios disponíveis para a obtenção de seus fins, lícitos ou não.

Vejam-se alguns de seus pensamentos: “Trate, portanto um príncipe de vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, pois o vulgo se deixa levar por aparências e pelas consequências dos fatos consumados, e o mundo é formado pelo vulgo”.

No pensamento do homem comum, o “vulgo” de Maquiavel, os conceitos medievais haviam permanecido vivos até aquele momento histórico, em virtude da forte influência da igreja e das regras do Direito Canônico (Corpus Iuris Canonici) e este, estribado na bíblia, gozava de caráter indiscutível, por sua origem considerada divina.

Tal fato pode ser constado claramente em outra citação de Maquiavel:

“Observa-se, pela experiência, em nossos tempos, que príncipes existiram que fizeram grandes coisas, mas em pequena conta tiveram a palavra empenhada, e pela astúcia souberam transtornar a cabeça dos homens”.

Note-se que, conquanto trate pejorativamente a base da pirâmide social por “vulgo”, por outro condena o desrespeito à palavra empenhada, conceito moral muito forte à época, tanto para o autor da citação quanto para o vulgo.

De fato, como afirmava Wieacker [6] “A Igreja era a força espiritual de longe mais importante; era a mais coerente e mais extensa organização social da Idade Média; a sua ordem jurídica interna era a mais poderosa. (...) A cristandade fixou desde o início o conceito do direito. Na medida em que a fonte de todo o direito não escrito – que arrancava da consciência vital espontânea – continuou a ser a ética social, e na medida em que toda a ética europeia continuou a ser, até bem tarde na época moderna, a ética cristã, a doutrina cristã influenciou o pensamento jurídico, mesmo quando legislador e juristas estavam pouco conscientes dessa relação. Através do cristianismo, todo o direito positivo entrou numa relação ancilar com os valores sobrenaturais, perante os quais ele tinha sempre que se legitimar”.

Nesse contexto, o Direito Canônico implantou, ao longo de séculos a concepção cristã de dignidade humana, o respeito à palavra empenhada, a noção de que seria pecado faltar ao que foi convencionado, ou violar juramento. Por essas razões, nada melhor, então, para legitimar-se algo, do que posiciona-la na categoria de “coisa inspirada diretamente por Deus”. E um conceito oriundo do Direito Canônico cairia “como uma luva” nessa pretensão.

Assim, os monarcas absolutistas conceberam o conceito da Teoria do Direito Divino dos Reis, que declarava que o rei governava pela vontade de Deus (que o fizera nascer rei quando poderia tê-lo feito nascer servo) e não pela vontade dos súditos. Por “Sua vontade”, o rei tornava-se absoluto.

Joseph de Maistre, no prefácio da obra Du principe générateur des constitutions politiques afirmava:

"(...) É escrito: Sou Eu quem faz soberanos. Esta não é apenas uma frase religiosa, uma metáfora de um pregador; é a verdade literal pura e simples. É a uma lei do mundo político. Deus faz reis, ao pé da letra. Ele prepara as classes reais, as cria no centro de uma nuvem a qual esconde suas origens. Finalmente elas surgem, coroadas com glória e honra, e tomam seus lugares”.

Tão somente a título de exemplo, no apogeu do absolutismo monárquico, surgiram diversos brocardos como o “L´Etac c´est moi” de Luiz XIV (“O Estado sou eu”), “lex est quod notamos”, este já em latim, para conferir uma pretensa origem milenar e tradicional (usada na Câmara dos Notários de Paris – “O que escrevemos tem força de lei”), “major e longinquo reverentia” (“maior reverência ao que está distante”), com a intenção de manter o domínio sobre províncias em locais remotos etc.

Na transição entre o Absolutismo e o Liberalismo, além desses brocardos, muitos outros foram criados, e enquanto no Absolutismo o rei se consagrava através do Direito Divino o poder de governar sem questionamentos, o desejo burguês era outro: o de que nenhum negócio redundasse em fracasso, ou seja, que o que se contratasse fosse cumprido do começo ao fim, sem questionamentos ou intervenções externas.

Consoante esse parecer, Eduardo Sens Santos [7] afirma:

“Ágil porque somente com a adaptação do direito ao incipiente comércio burguês seria possível o aumento do capital pela circulação das mercadorias. Eficiente porque poucas deveriam ser as hipóteses de descumprimento dos contratos, já que não estavam dispostos os todo-poderosos burgueses a perder com transações mal sucedidas. A solução para tanto seria o contrato liberal, no qual fosse considerado princípio fundamental a autonomia das partes, ou seja, a possibilidade de uma parte se comprometer com outra da maneira que entendesse melhor”.

Ainda sobre a questão em tela, no âmbito das aspirações burguesas ressalte-se o ensinamento de Daniela Vasconcelos Gomes [7] que diz

“A necessidade lógica de preservar de estranhas interferências a esfera da autonomia privada passava necessariamente pelo robustecimento do princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos. No contexto normal desse princípio, não seria possível admitir que a superveniência de acontecimentos determinantes da ruptura do equilíbrio das prestações pudesse autorizar a intervenção do Estado, pelo órgão da sua magistratura, para restaurá-lo ou libertar a parte sacrificada”.

  1. A UNIVERSALIZAÇÃO DO BROCARDO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Na contramão de todas as demais áreas do Direito, assim, o instituto contratual conseguiu, graças às pretensões liberais, ao brocardo Pacta Sunt Servanda e ao conceito do laissez-faire, ficar à margem das regras do ordenamento jurídico. De fato.

Utilizando-se de sua influência política, construída em virtude da inexistência ainda do sufrágio universal, e sendo o poder dominante, a burguesia constituía-se de importante grupo de pressão, a ditar as regras legislativas dos séculos XIX e começo do século XX. Para terem-se idéia, segundo dados do livro “Eleições no Brasil: uma História de 500 anos” [8], publicado pelo TSE, em meados do século XIX no Brasil, para um cidadão candidatar-se a deputado precisava possuir renda mínima de 400 mil réis anual; para senador, 800 mil réis, rendas essas que só poderiam obter os cidadãos da burguesia agrária e industrial. Que interesses esses parlamentares haveriam de servir? Os de seu grupo social, que se constituía de importante grupo de pressão.

AZAMBUJA [9] define grupos de pressão (separando o conceito do termo lobby atual) como “qualquer grupo social, permanente ou transitório, que, para satisfazer seus interesses próprios, procure obter determinadas medidas dos poderes do Estado e influenciar a opinião pública”, enquanto CASTRO [10] afirma que “grupos de pressão são grupos sociais que visam à manutenção ou a transformação de conduta social.”.

Em virtude desses fatores, a burguesia conseguiu universalizar a utilização do brocardo Pacta Sunt Servanda e seu reconhecimento pela legislação vigente. Com isso, negócios lícitos passaram a conviver com negociatas repletas de irregularidades, verdadeiros embustes colocados de forma velada nas cláusulas contratuais, sendo que muitas delas chegaram até o final do século XX, como as cláusulas miúdas em contratos, a esconderem o que de fato seria relevante e que poderia inviabilizar o ajuste.

Claro, no momento em que ficasse ciente das irregularidades, a parte lesada passaria a pretender a dissolução do pacto ou a retificação das cláusulas abusivas, mas, com a consagração do brocardo, viga mestra das pretensões liberais, isso lhe seria vedado.

Nesse sentido artigo “Função Social do Contrato”, de MIGUEL REALE [11], nos leva a algumas conclusões:

“Como uma das formas de constitucionalização do Direito Privado, temos o § 4º do Art. 173 da Constituição, que não admite negócio jurídico que implique abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Esse é um caso extremo de limitação do poder negocial, não sendo possível excluir outras hipóteses de seu exercício abusivo, tão fértil é a imaginação em conceber situações de inadmissível privilégio para os que contratam, ou, então, para um só deles”.

Inequívoco, nesse sentido, o valor da atual definição do Princípio da Imprevisão, já que impossível seria ao Direito Positivo cobrir todas as possíveis roupagens que as cláusulas contratuais poderiam assumir, dado “ser tão fértil a imaginação em conceber situações de inadmissível privilégio” como informa o nobre jurista.

Mas, mesmo que uma das partes tivesse um comportamento doloso na hora da efetivação do pacto sem que a parte lesada se apercebesse, a utilização indiscriminada do brocardo protegia a primeira e propiciava a disseminação sempre crescente dessas fraudes, já que a parte lograda não poderia recorrer ao Estado para discutir o problema, dada a blindagem dos pactos.

Para compreenderem-se outros elementos desse contexto, cabe citar-se a posição doutrinária de Rogério Ferraz Donnini [12]:

"Independentemente da análise da evolução do contrato, pode-se afirmar que o modelo liberal, que continua a existir na relação entre particulares, não mais atende às aspirações da sociedade atual, visto que não se pode mais admitir que uma relação contratual iníqua, celebrada com ausência de boa-fé e com prestações desproporcionais suportada por uma das partes, seja considerada válida, sob o argumento de que existe a autonomia privada a as partes são livres para contratar. (...) O liberalismo marcante do século passado fez do contrato o mais importante dos negócios jurídicos realizados entre as pessoas, vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma ética".

  1. A EVOLUÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO FRENTE À QUESTÃO

Devido à influência do pensamento liberal à época da elaboração do Código Civil de 1916, este aceitou o brocardo Pacta Sunt Servanda de forma passiva, limitando grandemente a possibilidade de intervenção dos juízes no conteúdo dos contratos.

Note-se que a intangibilidade do conteúdo dos contratos respondia também à exigência burguesa de que o Estado não se imiscuísse em seus assuntos privados, assente a premissa do laissez-faire, tão ao agrado dos liberais.

E assim, nas três primeiras décadas do século vinte, o Pacta Sunt Servanda vigorou soberano e protegido pelo Código Civil de 1916.

Mas o brocardo, no final dos anos vinte teve que sofrer um duro golpe: o Crack da Bolsa de Nova Iorque.

Em 1929, sem qualquer controle do Estado e sem uma uniformização dos procedimentos contábeis, muitas empresas que apresentavam graves problemas estruturais passaram a “maquiar” seus balanços e vender lotes de ações sem qualquer lastro a investidores ludibriados (fatos que só foram corrigidos a partir de 1934, quando o AICPA, sob os ditames do New Deal, padronizou as regras de lançamentos contábeis e tornou ilegais critérios subjetivos de análises de balanços).

Dessarte os prejuízos que levaram milhões à falência após a “quinta feira negra”, seguidos de 12 anos de depressão profunda, nada podia ser feito. Motivo? “pacta sunt servanda”: os investidores compraram aquelas ações por sua livre vontade e não poderiam receber amparo do Estado agora. O ordenamento jurídico apresentava-se “engessado”.

A grande depressão levou a um caos social sem precedentes (miséria, desemprego etc.) cujos efeitos se espalharam pelo planeta. A partir de então a concepção clássica dos contratos, o individualismo, começou a ser confrontada com um conceito novo: o do interesse coletivo.

A crise de contornos mundiais tornou notório que o Estado precisaria compulsoriamente intervir nos pactos, para coibir as fraudes, sob pena de jogarem-se as bolsas de commodities em total descrédito. Os “princípios” do laissez-faire, do individualismo, da inviolabilidade contratual e do Pacta Sunt Servanda começaram a ser questionados.

Miguel Reale elucida essas mudanças de mentalidade, consolidadas pela revogação do Código Civil de 1916, em artigo denominado A Boa Fé no Código Civil [13]:

“É claro que nenhum jurista pode ser contrário à elaboração de ‘categorias jurídicas’ destinadas à disciplina dos fatos sociais, atendendo às exigências da igualdade entre fatos da mesma espécie, mas o que é criticável é pretender que tal solução seja obtida tão somente graças a fórmulas de natureza jurídica, sem levar em conta os fins éticos e econômicos, por aqueles também reclamados” (...) “Daí a orientação assumida pelos autores do Anteprojeto do Código Civil, sistematizado e publicado em 1972, o qual, devidamente revisto culminou no Projeto de 1975, enviado ao Congresso Nacional, nele já apresentada a eticidade, cuja raiz é a boa-fé, como um dos princípios diretores que o distinguem do individualismo do Código revogado de 1916”. (...) “Concebida desse modo, a boa-fé exige que a conduta individual ou coletiva – quer em Juízo, quer fora dele – seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso”, e arremata: “Donde se conclui que quando o Art. 104 dispõe sobre a validade do negócio jurídico, referindo-se ao objeto lícito, neste está implícita a sua configuração conforme a boa-fé, devendo ser declarado ilícito todo ou parte do objeto que com ela conflite”.

Como pode ser facilmente compreendido pelo texto, o novo Código não admite “soluções através de fórmulas jurídicas”, quais sejam as do tipo Pacta Sunt Servanda, mas, muito ao contrário, propõe que a boa fé, “seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso”. Sem esse cuidado, corre-se o risco de legitimar negócio que deveria se declarado ilícito, por conflito com o “princípio diretor” do ordenamento jurídico contemporâneo, a boa fé, expugnando da parte lesada o direito à ampla defesa.

De fato, o Novo Código Civil passou a adotar a Teoria da Onerosidade Excessiva, pressupondo que a demonstração de boa fé no ato de fechamento do contrato pudesse restar prejudicada, por atitude maliciosa de uma das partes, e facultou a possibilidade da extinção do contrato caso esta ocorresse:

Código Civil de 2002

CAPÍTULO II Da Extinção do Contrato

Seção I Do Distrato

Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato.

Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.

Ora, se o contrato agora podia ser rescindido uniliteralmente, acabava de ruir a pretensão maior do sistema liberal: a inviolabilidade contratual.

A doutrina e a jurisprudência nacionais passaram, então, a admitir extinção ou revisão dos contratos quando, de algum modo, durante a manifestação da vontade dos contratantes, uma das partes, em posição de hipossuficiência, estivesse privada de perceber que a outra lhe estava impondo regras vedadas pela legislação.

Até então, iam-se ao supermercado e compravam-se mercadorias deterioradas que colocavam em risco a saúde de quem as consumisse, sem que nada pudesse ser feito: a tutela do bem supremo e razão de ser do Direito, a vida, não recebia o amparo do Estado, graças ao nefando brocardo: “comprou essa mercadoria porque quis – poderia ter comprado em outro lugar (sendo que todos os outros supermercados mantinham a prática de jamais retirarem das prateleiras mercadorias estragadas, de modo a não reduzirem seus lucros)”.

Mas esse estado de coisas estava por terminar: a própria sociedade gestava, devido aos efeitos dessas práticas amorais, um novo diploma para coibi-los: o Código de Defesa do Consumidor.

  1. O CONTRATO E A DESIGUALDADE ENTRE AS PARTES

Dentro do modus operandi da filosofia liberal, outro argumento relevante precisa ser discutido: a falsa idéia de que as partes exercem sua vontade em igualdade de condições.

De acordo com essa premissa, podia um industrial inglês da primeira revolução industrial contratar trabalhadores para as suas fábricas, imaginando-se uma relação igualitária do exercício das vontades.

Citamos a título de exemplo, as condições de trabalho em uma fábrica inglesa na primeira revolução industrial:

“Em entrevista realizada com o pai de duas meninas menores de idade à época:

1. Pergunta: A que horas vão as menores à fábrica?

Resposta: Durante seis semanas foram às três horas da manhã e voltaram às dez horas da noite.

2. Pergunta: Quais os intervalos concedidos durante as dezenove horas, para descansar ou comer?

Resposta: Quinze minutos para o desjejum, meia hora para o almoço e quinze minutos para beber.

(...).

6. Pergunta: Então, somente tinham quatro horas de repouso?

Resposta: Escassamente quatro.

(...)

9. Pergunta: As menores estavam cansadas com esse regime?

Reposta: Sim, muito. Mais de uma vez ficaram adormecidas com a boca aberta. Era preciso sacudi-las para que comessem.

10. Pergunta: Suas filhas sofreram acidentes?

Resposta: Sim, a maior, a primeira vez que foi trabalhar, prendeu o dedo em uma engrenagem e esteve cinco semanas no hospital de Leeds.

11. Pergunta: Recebeu o salário durante esse tempo?

Resposta: Não, desde o momento do acidente, cessou o salário”.

(Nascimento, Amauri Mascaro, “A indignação do trabalho subordinado”, in: Curso de Direito do Trabalho, Saraiva, São Paulo,1992, pág. 11-12.)

Para o empresário, nenhuma obrigação a ela lhe era devida, visto que, aceitando o contrato de trabalho, a menina demonstrava estar exercendo sua livre vontade de trabalhar ali: pacta sunt servanda. Não importava que ela fizesse isso por pura falta de opção, já que as fábricas inglesas se uniam em cartéis e as condições de trabalho eram as mesmas, em todas elas. Onde a vontade do contratado?

De fato, não há como se cogitar que exista verdadeira igualdade entre o industrial, detentor dos meios de produção, e o trabalhador, completamente desprovido de poder de barganha.

Discutindo-se essa relação de poder, Bobbio [14] entende que o poder se estabelece como “Uma relação entre dois sujeitos, dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento que, em caso contrário, não ocorreria”. Além disso afirma o doutrinador [15] que “Esta definição inclui o conceito de liberdade, ou seja, o poder de A implica a não liberdade de B”. Ou seja, a ideologia que fundamenta o brocardo Pacta Sunt Servanda, baseada na “liberdade de contratar” e na suposta “igualdade de condições”, dadas as diferenças de poder entre as partes e a condição de hipossuficiência de uma delas, parece não se sustentar per si.

Por consequência com o tempo surgiram, em diversas áreas, pactos norteados pelo dirigismo contratual, afastando desses a livre negociação entre os pactuantes (que de “livre”, aparentemente nada tinha), através de contratos celebrados segundo a legislação do Estado que os regulamentavam, como no caso dos contratos de trabalho, sujeitos às regras da CLT, e sua intervenção, em caso de descumprimento dessas normas. O dirigismo contratual significou importante derrota dos ideais liberais.

Mas, se por um lado acontecia essa gradual conscientização social a repudiar a inviolabilidade dos pactos, o liberalismo também evoluía para outras modalidades negociais, atingindo seu apogeu com os contratos de adesão.

Nessa nova modalidade de contatos, as cláusulas eram fixadas uniliteralmente por uma das partes, e à outra restava simplesmente aceita-las e contrair as obrigações decorrentes ou simplesmente desistir do pacto. Nenhuma autonomia para negociar as cláusulas lhe era facultada. Como falarem-se, nesses contratos, em princípio da autonomia da vontade, se esta se resumia ao aceite ou não de cláusulas que eram impostas?

Cabe ressaltar-se que na possibilidade de uma “padronização” de determinados procedimentos por todas as empresas de um segmento, o contratante ficaria absolutamente refém dessas práticas.

Citando-se, nesse contexto, o caso específico das instituições financeiras, algumas considerações fazem-se indispensáveis.

Partindo-se da premissa de que os agentes financeiros são permissionários de serviço público e funcionam com a função de prestar o serviço de intermediar, mediante lucro, as relações entre agentes superavitários de recursos e agentes deficitários dos mesmos, sob autorização do Estado, de modo a promoverem-se o desenvolvimento equilibrado da sociedade, torna-se necessário discutir-se a realidade prática de sua atuação.

Ora, implícita em sua própria função social depreende-se facilmente que se de um lado bancos têm o interesse de firmar contratos de empréstimos para a remuneração de seus serviços, de outro os agentes deficitários de capital, presentes em todas as sociedades, não podem deixar de fazê-lo, e como todos os agentes financeiros utilizam as mesmas regras (com mínimas variações, como qualquer breve pesquisa pode constatar), uma empresa, por exemplo, necessitando de recursos para fazer frente a oscilações do mercado, aceita e assina um contrato com um banco em total desigualdade de poder de barganha: ela o faz por absoluta falta de opção.

Nessas condições, restam apurados todos os ingredientes necessários para entenderem-se a ferrenha defesa dos bancos da tese da inviolabilidade contratual:

  • A criação e universalização dos contratos de adesão;

  • Sua condição de poderosos conglomerados financeiros, capazes de arregimentar os melhores profissionais para a elaboração de cláusulas que lhes maximizem os lucros;

  • A vulnerabilidade de parcela do mercado, por definição, carente de recursos, sempre em condição de hipossuficiência.

Contudo, a chegada da nova Constituição Federal, a promulgação do Código de Defesa do Consumidor e do novo Código Civil aprofundaram as discussões sobre o tema e como resultado obteve-se o advento do que se chama Crise Contratual e a possibilidade de intervenção dos juízes nos contratos.

Nos ensinos alienígenas de GUILLERMO BORDA este traz às claras o resultado desse processo, não só no Brasil como no mundo:

“La sensibilidad moderna se resiste a admitir que lo libremente querido sea, sólo por ello, justo”, ou seja, “A sensibilidade moderna resiste em admitir que algo combinado, só por isso, seja justo”.

Isso, sem dúvida, em virtude de que uma das partes poderia ter sido ludibriada durante a negociação e o aceite do pacto.

A legislação atual segue no mesmo sentido:

LINDB - Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.(Redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010

Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

CC - Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

O mestre JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENÇÃO [16] entende que a ordem jurídica se afasta cada vez mais “da rigidez que foi tomada como o ideal no início do século XIX. Está permeada de grandes orientações valorativas, destinadas a permitir uma maior aproximação da justiça do caso concreto.”.

Ao invés de tentar-se interpretar a vontade do legislador através de um exame exegético do novo Código Civil, melhor deixar-se que o próprio Miguel Reale tome a palavra, fazendo um comparativo com o CC de 1916 a fim de pacificar-se a real intenção do legislador:

“O princípio de socialidade: O "sentido social" é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor.”.

“O princípio de eticidade: O Código atual peca por excessivo rigorismo formal, no sentido de que tudo se deve resolver através de preceitos normativos expressos, sendo pouquíssimas as referências à equidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. (...) Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios etico-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa. O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto.” (grifos nossos)

(in http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm consulta em 02/04/2014).

Como se vê, o novo diploma sepulta as pretensões baseadas em interesses individuais e prima pelos coletivos; rompe definitivamente a inviolabilidade dos pactos, de interesse daqueles que de algum modo conseguem ludibriar a outra parte, para garantir a aplicação de princípios éticos no caso concreto.

Em seu artigo Transformações Gerais do Contrato, PAULO LUIZ NETTO LÔBO [17] destaca o crescimento do princípio da equivalência como uma das maiores características dos contratos na atualidade:

“Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado e celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem desproporcional para uma das partes e onerosidade excessiva para a outra, aferíveis objetivamente, segundo as regras da observação ordinárias”.

Nesse sentido, conclui também o mestre ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO:

“Não é possível que, ao final do século XX, os princípios do direito contratual se limitem àqueles da survival of fittest (sobrevivência do mais forte), ao gosto de Spencer, no ápice do liberalismo sem peias; seria fazer tábula rasa de tudo que ocorreu nos últimos cem anos. O contrato não pode ser considerado como um ato que somente diz respeito às partes; do contrário voltaríamos a um capitalismo selvagem, em que a vitória é dada justamente ao menos escrupuloso.”

  1. ANÁLISE DE CASO CONCRETO

De modo a compreenderem-se a dimensão do problema explanado até aqui, procurou-se extrair de um caso concreto, em que a autora intentou em juízo discutir o sistema de amortização utilizado por um banco em seu contrato de financiamento de capital de giro, mas que precisou recorrer da sentença “a quo” em virtude de esta estar totalmente estribada no brocardo Pacta Sunt Servanda.

Cabe salientar que, no recurso abaixo aposto, foram excluídos todos os argumentos diversos ao discutido no presente artigo, bem como foram apostas, a título de exemplo, tão somente algumas das fundamentações utilizadas nos autos, em processo graciosamente cedido pelo Dr. José Mário Araujo da Silva (OAB/SP nº 122.639).

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA 12ª. VARA CÍVEL DO FORO CENTRAL DA CIDADE DE SÃO PAULO – ESTADO DE SÃO PAULO

Processo nr. xxxx

Procedimento Ordinário

RAZÕES DE APELAÇÃO

Egrégio Tribunal

Colenda Câmara

Com todo respeito e acatamento, a Respeitável Decisão proferida pelo MM. Juiz de Direito da xxx Vara Cível do Foro xxxx da Cidade de São Paulo merece ser totalmente reformada, uma vez que, não foi bem aplicado o direito à espécie e nem atendidas as provas constantes dos autos.

Com a presente ação, pretendia a Autora demonstrar que o Apelado não cumpriu com o quanto estava estipulado no contrato firmado entre as partes, ou seja, que cobrou juros além daqueles devidamente acordados, utilizando formulas matemáticas que majoraram artificialmente seus rendimentos mensais e que são proibidas por lei, conforme já amplamente reconhecido por esse Egrégio Tribunal, assim como pelo nosso Superior Tribunal de Justiça.

Contudo, acreditando tratar-se de mais um dos inúmeros processos movidos contra bancos para discutir a submissão dos contratos bancários à Lei da Usura e à limitação de juros a 12% a.a., o que não é o caso, pelo que se depreende da R. Sentença, “data vênia” o MM. Juiz “a quo” não atentou para o efetivo objeto desta ação, simplesmente, julgando antecipadamente a lide e, com isso, além de provocar violento cerceamento de defesa, acabou equivocando-se em sua convicção e, por conseguinte, no seu veredito final, razão pela qual, a mesma merece total reparo por parte desse Egrégio Tribunal.

Apesar de ter ficado claro, na inicial, que não se discutia a reforma da vontade das partes ao se firmar o referido contrato e sim se o mesmo estava sendo executado nos moldes contratados, nem a taxa mensal de juros que estava sendo aplicada e sim se a mesma utilizava fórmula de cálculo que privilegiava critérios que feriam normas cogentes, além de outros pontos importantes na relação Banco/Cliente, o MM. Juíz assim julgou a presente lide, sem observar os direitos da Apelante:

(...)

Seguindo, o MM. Juiz “a quo” entende que a Apelante “não foi obrigada a contratar”, que “concordou com os termos e condições do instrumento, o qual, não sendo adimplido, acarreta, como consequência lógica, a cobrança do valor principal e dos encargos pactuados, de acordo com o Princípio Pacta Sunt Servanda”.

(...)

Com relação ao cerceamento ao direito de defesa da Apelante, cabe salientar que o MM. Juiz “a quo” ignorou pedido da Apelante consoante Súmula 381 do Superior Tribunal de Justiça, julgando de ofício e sem perícia, as alegações feitas pela parte, quando a lide demandava a necessidade de solicitar cálculos a serem efetuados por perito da confiança de V. Excelência, como foi pedido na inicial:

STJ Súmula nº 381 - 22/04/2009

Contratos Bancários - Conhecimento de Ofício - Abusividade das Cláusulas

Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.

Ainda para corroborar com a tese da Apelante, vejamos a Decisão do Superior Tribunal de Justiça, abaixo:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 843.769 - RS (2006/0091215-5)

(...)

EMENTA

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. CONTRATOS BANCÁRIOS. MORA. ENCARGOS ABUSIVOS. DESCARACTERIZAÇÃO.

1. Consoante entendimento pacificado da Segunda Seção, a cobrança de encargos indevidos importa na descaracterização da mora (Eresp 163.884/RS) 2. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)

Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Massami Uyeda (Presidente) e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado TJ/RS).

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator): Trata-se de agravo regimental manejado por SANTANDER BRASIL ARRENDAMENTO MERCANTIL S/A contra decisão que deu parcial provimento ao recurso especial vedando, contudo, a capitalização mensal dos juros. O agravante sustenta que "a impossibilidade da cobrança da capitalização mensal dos juros não tem o condão de afastar a mora do devedor, na medida que representa valor ínfimo diante do montante devido pela agravada ." Requer, por conseguinte, a declaração da mora do devedor. (fls. 557) O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator): A irresignação não merece acolhida. Com efeito, nos termos da jurisprudência desta Corte, se os encargos exigidos pela instituição financeira no período da normalidade contratual são abusivos, mesmo que representem valores ínfimos, a inadimplência não pode ser atribuída ao devedor. Nesses moldes, consoante entendimento pacificado (EREsp 163.884/RS), a cobrança de encargos indevidos importa na descaracterização da mora. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. É o voto. (...) A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS).

Brasília, 16 de novembro de 2010.

O Código Civil, em seu artigo 317, pressupõe a possibilidade de alteração das relações jurídicas em caso de manifesta desproporcionalidade, ao preceituar que:

"Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação."

A doutrina segue idêntico caminho:

ARAKEN DE ASSIS, em seus comentários ao art. 479 assevera que cabe ao réu estabelecer quais as novas condições do acordo no momento da oferta:

“Não basta o réu atribuir ao juiz o poder de fixar livremente as novas condições do contrato. Do órgão judiciário se espera, ao invés, que analise a idoneidade de que as condições apresentadas pelo figurante reconduzirem à equivalência das prestações no contexto da álea normal do contrato.”

(...)

Já o jurista NEWTON DE LUCCA prega:

"De outro lado, a chamada economia de mercado engendrara uma idéia absolutamente falsa – e, também, muito provavelmente cínica – de que o consumidor, favorecido pelo sistema da livre concorrência entre as empresas e pela multiplicação de bens e dos serviços colocados à sua disposição, iria tornar-se uma espécie de monarca do mercado, embora alguns espíritos mais argutos já denunciassem a falácia de tal dicção, tal como se pode ver em Zola e Charles Gide." (Direito do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 14)

Desse modo, a aproximação entre o Direito e a realidade faz-se através de outro brocardo que não o Pacta Sunt Servanda, mas o Rebus sic Standibus.

Verificada a ocorrência de um acontecimento imprevisível pela lei no momento em que o contrato foi celebrado e capaz de tornar o cumprimento da prestação a que se obrigara o contratante excessivamente oneroso, surge a necessidade de adaptação da regulação dos interesses que presidiram a celebração do contrato ao que determina a legislação.

Esta necessidade e possibilidade surgem como corolário dos princípios enunciados, tidos como basilares de nosso sistema jurídico, que vedam o abuso da liberdade contratual e a submissão arbitrária de um contratante a outro.

(...)

Conforme se depreende da R. Sentença, notadamente na parte dispositiva, ao julgar a causa, entendeu o MM. Juízo “a quo” que: “Louvando-me nos julgados e nas razões colacionados, adotando-os integralmente à guisa de motivação, concluo que não padecem de eiva os contratos originariamente entabulados entre os litigantes, sua consolidação (refinanciamento) ou sua execução, de maneira que nada há a ser nulificado, revisto, compensado ou repetido, menos ainda seria possível autorizar a minoração do valor das prestações restantes nos moldes que a autora aponta como correto, apenas a seu juízo, e o Insucesso da demanda se impõe”, pretendeu o MM. Juiz compreender por si mesmo o resultado da utilização de diferentes fórmulas matemáticas de cálculo, como se perito fosse.

(...)

Limite Legal de taxa de juros e Sistemas de Amortização

Não se questiona na inicial a legalidade de taxas de juros superiores a 12% a.a., a não sujeição das instituições financeiras à chamada lei da usura e a inexistência de norma que estabeleça limites às taxas de juros, nos termos da súmula 576 do STF.

  • não se insurgiu a Apelante, em momento algum, contra as “taxas de juros”, mas contra o sistema de amortização utilizado, em outras palavras, contra a forma como os juros foram calculados.

De fato o ordenamento jurídico pátrio atual não mais prevê tal limitação.

Porém, ocorreu no presente caso, a manifesta omissão no julgamento quanto aos tópicos relativos aos conceitos citados.

Discorreu o Nobre Magistrado da xxª. Vara Cível longamente na R. Decisão acerca da legalidade de taxas de juros superiores a 12% a.a., da não sujeição das instituições financeiras à chamada lei da usura e da inexistência de norma que estabeleça limites às taxas de juros, nos termos da súmula 576 do STF, verbis:

'As disposições do Decreto n. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema Financeiro Nacional'

Nesse sentido, na R. Decisão entende que “o C. STJ já firmou entendimento jurisprudencial consolidado na Súmula 382 no seguinte sentido:

'A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade'“.

Concorda nesse sentido a Apelante com o entendimento do Meritíssimo Juiz “a quo” e do STJ, já que, além do fato de que o ordenamento jurídico pátrio atual não mais prever tal limitação, o que realmente é relevante não é a taxa de juros pactuada, mas antes “a forma como os juros são calculados”, sendo que nesse ponto a R. Sentença omitiu parecer.

Contudo, sendo a pretensão da Apelante discutir um conceito e tendo a R. Decisão discutido outro, dispõe abaixo a definição de ambos, ressaltando que, muito embora versem sobre a questão “juros”, inequívoco serem de naturezas completamente distintas e familiares a profissionais ligados à matemática financeira, como contadores, economistas e mais especificamente a peritos contábeis:

Conceito taxa de juros:

Segundo LUIZ ANTONIO SCAVONE JUNIOR “A taxa de juros é um índice utilizado em economia e finanças para registrar a rentabilidade de uma poupança ou o custo de um crédito. A taxa de juros é uma relação entre dinheiro e o tempo dado que podem beneficiar a um poupador que decide investir seu dinheiro em um fundo bancário, ou seja, que se soma ao custo final de uma pessoa ou entidade que decide obter um empréstimo ou crédito. A taxa de juros é calculada em porcentagem e com frequência aplica-se de forma mensal ou anual.” (JUROS DIREITO BRASILEIRO 4ª EDIÇÃO SCAVONE - TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE – Editora Revista dos Tribunais - 2014) (grifos nossos)

Conceito sistemas de amortização:

De acordo com o Professor Fábio P. de Vasconcellos (MATEMÁTICA FINANCEIRA PARA ADVOGADOS – Ed. APEC), “Sistemas de Amortização são procedimentos matemáticos que, de acordo com o critério de cada sistema, calculam o processo de quitação de um empréstimo em pagamentos periódicos (prestações), até que tenha havido a liquidação efetiva do saldo devedor”. Tais prestações são formadas pela aplicação das taxas de juros pactuadas à fórmula de cálculo e se compõe de duas partes distintas: uma relativa à amortização do capital; outra relativa aos juros calculados.

Os Sistemas de Amortização mais utilizados são o Sistema Gauss (Método Ponderado Linear), a Tabela Price ou Sistema Francês de Amortização (SFA), Sistema SAC (Sistema de Amortização Constante) e Sistema SACRE (Sistema de Amortização Crescente).

(...)

Respectivamente, as fórmulas de cálculo dos 4 sistemas citados acima são as seguintes:

Os critérios e particularidades de cada sistema de amortização acabam por gerar grandes diferenças entre os valores das obrigações, bem como nas características da progressão do adimplemento das parcelas e da amortização do saldo devedor (...) (grifos nossos)

Resta claro que “taxa de juros” (índice pactuado) e “sistema de amortização” (método de cálcular-se os valores dos juros ou fórmula de cálculo utilizada, onde são aplicadas as variáveis, entre elas a taxa de juros), são conceitos completamente diferentes.

Daí ter a Apelante solicitado, expressamente, que o MM. Juiz ”a quo” deferisse a perícia feita por profissional de sua confiança, como elemento fundamental para o deslinde da demanda. O trabalho de tal profissional seria fundamental para comprovar o que alega a Apelante, meio importante para a produção de prova, o que não foi feito, destarte o que dispõe a súmula 381 do STJ citada.

(...)

Saliente-se tratar-se aqui de total irresignação para com o Veredito.

Pelas razões apresentadas fica evidente que fosse para questionar presumível limitação de taxas de juros, como assim entendeu o Nobre Magistrado de Primeira Instância, não teria a Apelante procurado o Poder Judiciário, já que não discute a mesma, como pode ser percebido claramente a partir da simples leitura da inicial. Tampouco propõe a Demandante estar a taxa de juros pactuada acima da “taxa média de mercado”, por considerar esta irrelevante, consoante o relatório do Ministro José Delgado, aposto abaixo.

No entender da Apelante é nesse ponto (forma do cálculo dos juros – sistema de amortização / anatocismo), que existem ilegalidades a serem apreciadas em juízo, de acordo com fundamentação do STJ presente na página 5 da Petição Inicial:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

REsp nº 668.795 - RS (2004/0123972-0

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. (...) INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULA CONTRATUAL. SÚMULA 5/STJ. INCIDÊNCIA. TABELA PRICE. JUROS CAPITALIZADOS. ANATOCISMO. CARACTERIZAÇÃO

(...)

A organização do fluxo de pagamento constante, nos moldes do Sistema Francês de Amortização, concebe a cotação de juros compostos, o que é vedado legalmente, merecendo ser reprimida, ainda que expressamente avençado, uma vez que constitui convenção abusiva.

(...)

O art. 23 da Lei 8.004/90 prevê expressamente a possibilidade de restituição dos valores eventualmente pagos a maior pelo mutuário.

VOTO

O SR. MINISTRO JOSÉ DELGADO (Relator): Em que pesem os argumentos levantados pela CEF, o recurso especial não merece prosperar.

(...)

(...) quanto à questão da incidência da chamada Tabela Price aos contratos de prestações sucessivas, já firmei o meu posicionamento pela impossibilidade, vez que no sistema em que a referida Tabela é aplicada, os juros crescem em progressão geométrica, sendo que, quanto maior a quantidade de parcelas a serem pagas, maior será a quantidade de vezes que os juros se multiplicam por si mesmos.

(...)

(...) para demonstração de ilegalidade ou não da Tabela Price, faz-se a seguir um comparativo entre o cálculo de juros simples ou lineares e o cálculo dos juros pela já referida Tabela Price. Primeiro se faz um comparativo com exemplos simplificados entre cálculos de 06 e de 12 meses de prazo (Situações 'A' e 'B' adiante), para facilitar o entendimento e, depois, se compara com o caso concreto do contrato em debate nos autos.

Situação A:

Juros de 10% ao mês e prazo de 06 meses:

Cálculo de juros simples ou lineares: 10% x 6 meses = 60% de juros totais em 6 meses.

Cálculo pelo Sistema Price: (1+ 10%) 6 = (1,10) 6 = 1,7715 - 1 = 0,7715 x 100 = 77,15% de juros totais nos mesmos 06 meses.

> Conclusão: pelo Sistema Price não se está pagando 10% ao mês, mas sim, na verdade, 12,85% ao mês, o que ocorre em face de a aludida Tabela já conter em sua sistemática de cálculo uma função exponencial que constitui uma progressão geométrica e gera na verdade a incidência de juros sobre juros.

Situação B:

Juros de 10% ao mês e 12 meses de prazo:

Cálculo de juros simples ou lineares: 10% x 12 meses = 120% de juros totais em 12 meses.

Cálculo pelo Sistema Price: (1 + 10%)12 = (1,10) 12 = 3,1384 - 1 = 2,1384 x 100 = 213,84% de juros totais em 12 meses.

> Conclusão: pelo Sistema Price não se está pagando 10% ao mês, mas sim, na verdade, 17,82% ao mês, fato, como já referido na letra 'A', decorrente da função exponencial contida na fórmula da Tabela Price.

Note-se que os juros de 10% ao mês, aplicados pela Tabela Price, na realidade, são mais altos, e quanto maior o prazo, maior é a diferença entre a Tabela Price e os juros simples: 10% em 6 meses, a juros simples ou lineares, correspondem a 60%, enquanto que, pela Tabela Price, ascendem a 77,15% (uma diferença a maior de 17,15%). Estendendo-se o prazo para 12 meses, tem-se 120% a juros simples ou lineares e 213,84% pelo Sistema Price (uma diferença a maior de 93,84%). Essa situação mostra que, na verdade, o que é relevante não é propriamente a taxa de juros contratada (10%), mas sim o prazo, pois, quanto maior o prazo, maior será a quantidade de vezes que os juros se multiplicarão por eles mesmos {(10%) 6.(10%)12}, o que demonstra e configura o anatocismo como traço inerente e imanente à Tabela Price.

(...)

"Incontroverso que a metodologia de cálculo denominada método Francês de Amortização ou Tabela Price, acarreta a ilegal capitalização de juros. Até porque a matemática é uma ciência exata, onde não se admitem diversas explicações para o mesmo fenômeno. Assim, em havendo o elemento (1 + i) n na equação, há a presença de fórmula que prestigia a contagem de juros sobre juros" (grifos nossos)

Nesse sentido, os contratos em debate nos autos, comprovam exatamente o disposto na decisão do STJ acima, já que os contratos e perícias da parte apontam que:

  • (...)

Ou seja, o Réu não cumpriu o contrato, mas, através de artifício matemático, em verdade, agiu de forma dolosa, ao pactuar um índice que retornaria determinado valor nas obrigações e utilizar outro, que retornava valor maior. Dolo, pura e simples.

Alguma dúvida tinha o MM. Juiz “a quo” acerca dos cálculos apresentados pelo parecer técnico da parte? Ela seria definitivamente deslindada, caso o mesmo atendesse:

  • O pedido da Apelante de solicitar perícia feita por profissional da confiança de V. Excelência, para que os resultados fossem comparados;

  • A determinação da súmula 381 do STJ, abstendo-se de julgar de ofício o ponto central da controvérsia.

Não o fez o MM. Juiz de primeira instância, contudo. E a alegação de dolo feita pela parte continua sem julgamento, motivo este o principal pelo qual procurou ela o judiciário, pagando as custas pertinentes (inclusive do presente recurso, no valor de R$ 24.350,00), contratando patronos, etc..

(...)

Mais uma vez, entende a Apelante que o julgamento antecipado da lide, ocasionou-lhe verdadeiro cerceamento de defesa, assim como, deixou o MM. Juiz “a quo” de apreciar corretamente a matéria, confundindo-se quanto ao real objeto da ação, não atentando para as Decisões desse Egrégio Tribunal, assim como, do Colendo STJ, e deixando de deferir direito líquido e certo da Recorrente.

Diante do exposto, requer-se à Vossas Excelências que se dignem em julgar totalmente procedente a presente apelação, reformando totalmente a presente Sentença, determinando o retorno dos autos à Vara de Origem para a realização da perícia contábil e sequência do feito, como de estilo, com o qual e como sempre, estarão fazendo JUSTIÇA!

Nestes Termos

Pede Deferimento

  1. Conclusão

Parece nada ter de Princípio Geral do Direito o brocardo Pacta Sunt Servanda, mas, muito ao contrário, as pesquisas apontam para o fato de que a inviolabilidade dos contratos de qualquer tipo (de compra e venda, de trabalho, de locação etc.) é fruto da pretensão burguesa de obrigar, a qualquer preço, o pactuante, independentemente de ter o acordo em seu sinalagma cláusulas que tão somente a beneficiassem, a cumprir o contrato, deixando-se a parte prejudicada de receber amparo legal.

A motivação da criação do brocardo, por certo, era encobrir ilegalidades tornadas usuais nas práticas liberais, notadamente dos agentes financeiros.

Por que motivo, que não esse, tão tenaz irredutibilidade para discutir as cláusulas contratuais em juízo, se justas as mesmas? Por uma única razão: se o contratante dirigir-se a determinado banco e receber a informação de que será usada determinada taxa de juros, não se apercebe de que, conforme a fórmula que for utilizada, o valor a adimplir resultará completamente diferente.

Usando-se como exemplo um financiamento imobiliário no valor de R$ 162.390,00, a ser pago em 360 meses a uma taxa de 10,39990 ao ano, conforme o sistema de amortização utilizado, este retornaria os valores totais seguintes:

1. Aplicados Juros Legais – o valor ascenderia a R$ 260.001,89

2. Aplicado o Sistema SAC - o valor ascenderia a R$ 398.545,86

3. Aplicado o Sistema Price - o valor ascenderia a R$ 510.217,44

4. Aplicado o Sistema SACRE - o valor ascenderia a R$ 581.144,10

Por óbvio, ao sentar-se diante do gerente de um banco, este munido de sua calculadora financeira ou de seu computador, a aplicar habilmente a taxa de juros à fórmula adotada, não entende a contraparte como este chega a determinado valor; tampouco um magistrado teria condição de fazê-lo.

Ainda que em vigor por quase dois séculos, o brocardo, nas últimas décadas, deixou de ter o mesmo tratamento do ordenamento jurídico pátrio, com as mudanças na legislação e as decisões pacificadas nos tribunais.

Contudo, ao que parece, o Pacta Sunt Servanda ainda deixa vestígios de sua nocente passagem pela sociedade brasileira, como mencionado e exemplificado, em decisões de primeira instância.

Pretende-se crer, no entanto, que essa situação tenda a se modificar, através de repetidas reformas das decisões “a quo” e a cominante percepção de nossos juízes de primeiro grau acerca das mudanças implementadas no ordenamento jurídico brasileiro, conquistadas através de décadas de lutas de doutrinadores, magistrados e legisladores competentes e idôneos.

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[3] VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil - Vol. I - Parte Geral, ed. Atlas, 14ª Ed. 2014.

[4] REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 18ª ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 1998.

[5] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1991. p. 447.

[6] WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967

[7] SANTOS, Eduardo Sens. A função social do contrato: elementos para uma conceituação, in Revista Brasileira de Direito Privado, n. 13 São Paulo: RT, jan./mar. 2003, p. 101.

[8]http://www.tse.jus.br/hotSites/CatalogoPublicacoes/pop_up/eleicoes_no_brasil_uma_historia_de_500_anos.htm visitado em 05/05/2014.

[9] AZAMBUJA, Darcy. Introdução a Ciência Política: 15ª Edição. São Paulo: Globo, 2003. p. 315.

[10] CASTRO, Celso Antônio Pinheiro de; FALCÃO, Leonor Peçanha. Ciência Política: Uma Introdução. São Paulo: Atlas, 2004

[11] in http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm visita em 06/05/2014.

[12] DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Saraiva, São Paulo, 2001

[13] http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm visita em 04/05/2014.

[14] BOBBIO, Norbert. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 1985.

[15] BOBBIO, Norbert. et al. Dicionário de política. Brasília: UnB/São Paulo: Imprensa Oficial, v. 1 e 2, 2000.

[16] ASCENÇÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Teoria Geral. V. III. Coimbra : Coimbra Editora, 2002.

[17] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Transformações Gerais dos Contratos. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 16, out/dez 2003, pp. 103-113..


 
 
 

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