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Além da Justiça - Ideias sociais e jurídicas na obra Vigiar e Punir, de Foucault.

  • Winicius Mendonça
  • 29 de jun. de 2016
  • 17 min de leitura

Vigiar e Punir, uma das principais obras de Foucault, inicia-se narrando uma verdadeira cena de crueldade humana, temperada com requintes de pantomima penal. Trata-se da execução da pena de Damiens, um parricida condenado. Em seguida, saímos da horrenda paisagem da morte de Damiens [1] e lemos um regulamento de um internato [2] de jovens infratores. Temos, nesse momento, diferença da época e da pedagogia da punição

Foucault faz o seguinte comentário acerca desses dois momentos da história de repreensão de humanos delinquentes: “Apresentamos exemplo de suplício e de utilização o tempo. Eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinquentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal. Menos de um século medeia entre ambos”. E complementa: “[...] desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repreensão penal”.

O que, no passado, era necessário, pois o povo precisava se assustar com as formas hediondas de punição, no futuro não tão distante foi modificado, porque, na verdade, o que o povo precisa não é de cenas chocantes de violência praticadas pelo Estado, que deveria ser a mãe e o pai de todos os cidadãos, mas sim de uma educação mais perene, mais justa, mais fraterna e mais frequente. O Estado precisa, ainda hoje, beber na fonte profícua de Paulo Freire: “educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.

Damiens

“Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalharlhe as juntas...” FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 40 ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p.9

Internato

Regulamento redigido por Léon Faucher para a “Casa dos jovens detentos em Paris”.

Esse será o grande efeito que teremos para prevenir delinquências e outros desajustes sociais.

O filósofo francês assevera que: “A execução publica é vista como uma fornalha em que se acende a violência”. Destarte, lembro-me de dois ensinamentos exortados por Lacassagne e Beccaria.

Alexandre Lacassagne, no passado já afirmava: “A sociedade tem os criminosos que merece”. Afinal de conta, nós é que dosamos o poder e o dever-ser de cada um. Se somos rígidos demais, teremos celebrados cruéis, se formos muito complacentes teremos criminosos contumazes. Qual a receita certa? O equilíbrio! Como se alcança essa condição equânime? Educando!

Beccaria, por sua vez, refletia: “Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais horrendos”.

Violência Gera Violência

Caro leitor, é verdade! Não é apenas um mero aforismo ou uma tradição oral que escutamos e repassamos aos nossos colaterais e descendentes, violência gera violência. Com a medida que apenarmos o outro, esta será a medida que nos admoestará. Se fracassarmos na reeducação e ressocialização dos delinquentes, estes retornarão ao mundo real, mais cedo ou mais tarde, e cometerão novas atrocidades, às vezes piores do que as cometidas no passado. O modelo penitenciário precisa ser revisto. Ainda é tempo.

Mais uma vez, Foucault nos doa uma pérola: “[...} a certeza de ser punido é desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro: a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte da violência que está ligada ao ser exercício”.

O Estado-juiz começa a entender que o seu trabalho é: “[...] procrar corrigir, reeducar, ‘curar’, e não mais promover espetáculos sangrentos no meio da rua, pensando ainda estar nos tempos do coliseu na Roma antiga.

Na grande evolução que o Estado vem passando de milênio para milênio, de século para século, aprendeu uma nova lição que ensina: “O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”.

Hoje, devemos suspender o direito de liberdade ou os direitos políticos, mas nunca, jamais o direito à vida ou o direito à incolumidade física. Entretanto, infelizmente, alguns Estados não cumprem os tratados internacionais de direitos humanos e, ainda hoje, nos dias hodiernos, assistimos, em plena revolução tecnológica e intelectual do homem, à existência de prisões que são verdadeiras masmorras ou calabouços insalubres e degradantes. Como é possível recuperar um criminoso usando meios e ferramentas que os séculos anteriores já demonstraram o fracasso?

É fácil a equação matemática que devemos aplicar hoje. Não precisarmos atacar o corpo material, muito menos o psicológico moral. É fácil, basta demonstrar aos delinquentes o caminho certo. Todos merecem chances. Ainda mais em um País onde a desigualdade é extrema e as oportunidades são rarefeitas, para não dizer, monopolizadas por uma ou duas frações de indivíduos da sociedade. Como tão bem demonstra Foucault: “Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprima a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou a multa tira os bens”. Evolução. A palavra de ordem é essa: evolução. Saímos dos suplícios que escarneciam o corpo dos apenados para um engenho que, num rápido manuseio, retirava a vida do apenado, sem que, para isso, fosse necessário violá-lo, vilipendia-lo e tortura-lo. Depois disso, a evolução tirou a guilhotina e passou a suprimir a liberdade e o direito de propriedade ao invés da vida. Evoluímos. E agora, paramos? Evolução quer dizer movimento. O grande Charles Chaplin ensinou-nos a evoluir para a direção certa, se é que tem direção certa. Numa ocasião, o velho Chaplin ia caminhado placidamente pela rua, quando, sem menos esperar, topou em uma pedra e se desequilibrou; a meninada que estava a brincar na rua olhou para o grande artista e o insultou “Vai para onde, palhaço?”. E Chaplin respondeu: “Para frente, sempre para frente”.

Questões

Voltando aos ricos ensinamentos da obra que estamos analisando, percebemos um retrato histórico doado por Foucault: “Os parricidas – e os regicidas, a eles assemelhados- eram conduzidos ao cadafalso, cobertos por um véu negro, onde, até 1832, lhe cortavam a mão”.

Por que o Estado passou a cobrir o rosto dos criminosos, em vez de lhe expor, como se fazia nos suplícios públicos? Por um simples e importante motivo: evitar a publicidade desses fatos. Somos, ao lado de grandes gênios e pensadores, defensores do fato de que a mídia deveria evitar exibir de forma sensacionalista alguns desatinos sociais. Não é de hoje a percepção de que, quando um novo crime, ou modalidade de crime, é exibida na mídia, dias ulteriores, há uma verdadeira epidemia do neocrime. País afora. Parece que a televisão, a internet, o jornal, o rádio ensinam a pessoa a fazer algo que ela nem imaginava ou, como pensam alguns, acordam o gene sociopata e psicopata que está adormecido em determinados indivíduos.

Nos idos da década de 1980 e 1990, a Inglaterra passou por um momento difícil na área esportiva, mais precisamente no futebol. As torcidas dos inúmeros clubes de futebol daquele país passaram a se uniformizar e se organizar para torcer pelo seu time nos estádios. Até aí, nada de mais, pelo contrário, atitude interessante de coesão e união em prol da sua agremiação esportiva. O problema veio depois. A rivalidade esportiva ultrapassou o bom senso do esporte e passou a lesar a integridade física das pessoas, ceifando, em alguns casos, até a própria vida. Nesse momento, a Inglaterra passou a conhecer grupos de torcedores intitulados Hooligans, que, em tradução livre, quer dizer: Vândalos. Esses torcedores praticavam violência contra outros torcedores, terceiros que nada tinham a ver com revanchismo desportivo, propriedades, animais, espaços públicos e tudo mais que se encontrava na direção deles. Era uma verdadeira horda de marginais a saquear, espancar, espoliar, depredar e destruir. Como a Inglaterra conseguiu educa-los? Simples. Parou de exibir em telejornais, jornais escritos e rádios, notícias que informassem a ação desses arruaceiros. Os psicanalistas e antropólogos são unânimes em concordar que todo ser humano é exibicionista, uns são menos, outros são muito, mas todos o são. Muitos desses hooligans objetivavam a mídia, a publicidade, a propaganda, a falácia de chegar para os amigos e dizer: “Não sou um mero anônimo, sou um hooligan e ontem a ação do meu grupo foi televisionada, foi fotografada etc.”. Cessou a mídia, cessarem os ataques.

Ainda hoje, quando, em jogos de futebol que possuem grande disputa entre os dois times, um ou outro torcedor invade o campo para praticar um ato desarrazoado, a primeira providência que a televisão faz é tirar o foco da imagem da cena, ou seja, posiciona a câmara focalizando uma cena bonita que ocorre no estádio, uma criança tomando sorvete, um casal se abraçando etc. Não há mais propagação, só tem conhecimento do intruso aquele que foi ao estádio e este não tem conhecimento apenas do fato infracional, mas também de severa punição que o infrator, ali mesmo, no juizado especial que tem no estádio, irá sofrer. A Inglaterra somou atitude inteligente com uma repreensão severa, aguda e eficaz. Resultado: os hooligans fazem parte do folclore local. Exemplo para mídia do mundo, mormente, a nossa brasileira. Não esquecemos: um criminoso, além de ter o direito constitucional de proteção a sua imagem, não merece ser visto como um herói. Quantos brasileiros e brasileiras fazem atitudes altruístas todos os dias e a mídia não vai em busca dessas pessoas?

Visão

Retornando Foucault, encontrarmos algumas passagens que demonstram cabalmente o fracasso e a falência da pena de morte. Não é com a morte do criminoso que vamos educar a sociedade, afinal não podemos perder de vista que o criminoso deve ter receio de praticar crimes por conta da sanção que irá sofrer, e não porque será, desde o início, apenado pela sociedade para ir à forca ou para perecer a pena capital.

Certa ocasião, uma criminosa foi levada ao banco dos réus e, após a leitura do libelo acusatório e das razões da defesa, teve, por fim, sua condenação confirmada nos termos da delatória. Em seguida, a ré: “conservava o sangue frio até o momento da leitura do julgamento, mas cuja cabeça começou a ficar perturbada, e completamente louca, ao ser enforcada”, (FOULCAULT,Michel. Vigiar e Punir) Nem mesmo o pior criminoso, o mais selvagem, o mais celerado, o mais perverso, consegue se manter inerte diante da possibilidade real de ter sua vida ceifada. Quantas crianças cresceram alimentando dentro de si a vingança contra a morte sofrida por seus pais criminosos? Quando o Estado aceita a pena de morte em sua circunscrição, está assinando o atestado de início das vendetas, ou seja, as vinganças das vinganças. Até onde isso foi parar? Já não nos basta essa vendeta nos morros cariocas, nas periferias de São Paulo, Brasilia, Fortaleza, ou qualquer outra grande cidade brasileira? O tráfico de drogas constituiu sua lei eo artigo primeiro da Constituição Federal defende a vendeta. Quantos menores assistiram a seus pais morrendo nas mãos de traficantes? Quantos desses não se vingaram contra os traficantes ou seus familiares?Se o Estado inicia esse regime, como pode o Estado querer o contrário? O Estado é o pai e a mãe da sociedade, deve querer obstinadamente educar, e educar tem como o primeiro passo o exemplo.

Os países e as nações que adotam esse sistema de pena de morte, mesmo esses entes públicos, sabem que não se pode mais, em dias hodiernos, propagar a morte como meio de pacificação social. É preciso proibir a pena de morte, caso ainda não se consiga, ou, pelo menos, proibir a sua propagação ou exposição gratuita.

A pena moderna que o criminoso deve sentir é aquela ”que fere mais a alma do que o corpo” (MABLY. G De la Legislation. Quevres Completes).

Entra no palco do espetáculo penal a punição moral, aquela que atua na consciência do indivíduo, que sofre não apenas o repudio e o vitupério social, mas também o seu próprio asco, a sua própria pena mental Sem dúvida, a pena que lesa a “alma”- em sentido figurado – é bem mais eficaz para a reeducação ou a reflexão da infração cometida do que uma punição corporal, que, muitas vezes, se não todas, cria mais raiva e ódio no infrator.

Foucault acha que essa substituição uma efeméride exemplar para o desenvolvimento carcerário e proclama: “O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Momento importante”.

Momento para esquecer os suplícios judiciais históricos. Esquecer não significa deixar de faar, pois é guardando na lembrança os erros do passado que, assim, poderemos nos corrigir no presente e zelar pelo futuro. Dito isso, farei uma breve explanação sobre suplicio. Confira o magistério filosofal de Foucault.

Código Jurídico da Dor?

É possível ainda pensar dessa maneira nos dias iluminados de nossa era? Como pode Thêmis perseguir o corpo do apenado ao invés de cegamente lhe doar uma decisão impregnada de equidade no seu sentido mais aristotélico possível? Não há mais o menor espaço para sequer pensarmos em suplícios nos dias atuais, mesmo sabedores que somos, de que, em países orientais, a prática ainda é contumaz.

“Um suplício bem-sucedido justifica, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado”. Caros leitores, sintam o peso desta sentença e reflitam.

Foucault utopicamente demonstrava que, se fosse para ter um julgamento de suplicio, este deveria ser antevisto pelo: “[...] conhecimento da infração, conhecimento do responsável, conhecimento da lei. [...] três condições que [permitem] estabelecer um julgamento como verdade bem fundada”.

Foucault pregava isso, porque sabia que não havia de forma lapidar o cuidado e o zelo por essas três investigações básicas, logo, não deveria nunca haver suplícios. Quantos de nós já não ouvimos falar de cidadãos que foram presos injustamente e que, até hoje, cumprem pena ilegal nas celas nubladas de nosso sistema carcerário? De quantos relatos não temos conhecimento sobre pessoas menos abastadas que foram presas em lugar dos verdadeiros criminosos? Se, por acaso, no Brasil, fosse permitida a pena de morte, quantos inocentes não seriam estupidamente mortos?

Nossa oração deve mirar no ensinamento profícuo de Roberto Lyra, o maior promotor de Justiça de todos os tempos: “Melhor inocentar um culpado, do que culpar um inocente”.

Para Ruy Barbosa, a grande “Águia de Haia”: Não há o sofrimento mais confrangente do que a injustiça”. Falamos isso, porque, no passado – o passado horrendo dos suplícios – a maioria dos processos , senão todos tramitava em segredo e na presidência de um homem conveniente e parcial.

Momentos

Isso nos remete a três fatos infelizes. Um ainda bem, reside apenas na redação romanceada de Franz Kafka, enquanto os outros dois, hediondamente, fazem parte da História do mundo. Falo dos processos de Josep K., na obra O Processo do tcheco Franz Kafka, e dos julgamentos nefastos de Jesus Cristo e Sócrates, os quais tive o precioso trabalho de analisar sob as lentes cristalinas do Direito.

Hoje, os processos secretos ou imiscuídos do direito pleno de defesa são chamados de processos kafkianos. Enquanto os processos de Jesus Cristo e Sócrates ficaram estampados nas egrégias páginas da história, como não devemos proceder diante de processos criminais? São três julgamentos que merecem nossa atenção e de todo cientistas jurídico, quiça de toda a sociedade avançada e desenvolvida do século XXI.

Além de serem secretos, alguns julgamentos não permitiam ao réu, nem mesmo no ato de execução da pena, falar com os magistrado ou com a acusação. “Os mais pobres- observa um magistrado – não têm possibilidade de serem ouvidos na justiça”. É nesses momentos que a máxima de Ovídio se faz real: “Cura pauperibus clausa est” (o tribunal está fechado para os pobres).

Por isso, em 1977, em Vues sur la Justice Criminelle, o jurista Le Trosne clamou que a justiça pública diminua suas prerrogativas contrárias à defesa e que considerem inocentes os acusados até a eventual condenação. Gestando, assim, o embrião do princípio da presunção de inocência que preconiza que todos são inocentes enquanto não se prove o contrário. Outra mudança proposta por Le Trosne foi que o juiz se tornasse um árbitro justo para a sociedade e que as leis fossem fixas, constantes, determinadas, de modo que os tutelados saibam qual o magistério das leis. Este último pedido de Le Trosne era baseado na assertiva de que, em cada processo, o magistrado aplicava a lei mais conveniente para ele ou para os poderosos da época, deixando, desta maneira, toda a população extremada. Aqui, gestava-se também a gênese do princípio da segurança jurídica.

Nos suplícios, o que mais inquietava Jaucort, o pai da enciclopédia, eram as maquinações do homem em apenar os seus semelhantes: “é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade”.

Nesses termos, lembro-me do grande homem e advogado Mahatma Gandhi que, espantado, assustado, costumava dizer: “Foi sempre para mim um mistério o fato de alguns homens se sentirem satisfeito com a humilhação de seu semelhante”.

O passado enterrou, juntamente com o tempo – aquele que inexoravelmente não para – algumas espécies de suplícios. Entretanto, ainda hoje, países cometem atrocidades contra os direitos humanos à vida e à dignidade.

Esses países que, ainda hoje, imprimem suplícios judiciais aos seus custodiados deviam ler Cahier de Doléances da Chancelaria Real da França, publicada em 1789: “Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos [...] que sejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade”.

O suplicio não lesa apenas o condenado, mas a sociedade como um todo, como um grande bloco monolítico que precisa de regras e ensinamentos abalizados por uma bússola humana e humanística. A justiça aplicada pelo Estado, caros leitores, deve ter a certeza da nova aurora e convicção da natureza, a ridigez de um monarca e a humanidade de um acesta, a fortaleza do tronco de jucá e a flexibilidade do bambu, a velocidade do vento e a perseverança das abelhas operárias.

Na seara das mudanças na execuções que vinham ocorrendo com a evolução intelectual da sociedade e, principalmente, dos monarcas, magistrados, eclesiásticos e outros poderosos, um filosofo erudito propunha uma nova formula “O Estado tem que ter o formidável direito de punir, pois o infrator se torna o inimigo comum”. Portanto, o infrator que vive em sociedade é, antes de tudo, um traidor das regras e tratos sociais desferindo um golpe desleal nas entranhas do habitat onde vive e existe socialmente.

“Todo malfeitor, atacando o direito social, torna-se, por seus crimes, rebelde e traidor da pátria: a conservação do Estado é então incompatível com a sua”. Baseado nesse pensamento, Rousseau exortava que o criminoso deve ser afastado do convívio em sociedade. Entretanto, esse afastamento não significava aplicar suplícios corporais ou cruéis.

No reflexo criado por grandes pensadores, surge outro que vem agregar além do seu clássico saber inlectual e humanístico, o saber jurídico voltado para a amortização dos desatinos sociais. Estou falando do inolvidável Cesare Beccaria.

Beccaria era sucinto e, ao mesmo tempo, contundente: “Podem os gritos de um infeliz entre tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida?”. Em outras palavras ele indaga: é possível castigar uma pessoa cruelmente, partindo da premissa de que sua atitude irá ser apagada ou restaurada? A vida que o infeliz condenado ceifou irá retornar com o sofrimento dantesco a ele aplicado? A resposta é e sempre será: não! O apenado deve reconhecer seu erro, arrepender-se, reeducar-se, ressocializar-se e depois retornar ao meio social. Essa deve ser a pedagogia da punição: educação. Segundo Beccaria.

Barnave discursava em plena constituinte francesa: “Calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visão não à ofensa passada, mas à desordem futura. Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter imitadores”.

Parafraseando Pitágoras: educando não será necessário punir.

Como educar um detento? Um condenado? Um celerado contumaz?

Existem diversas formas. Muitas não tentadas, outras bem-sucedidas, poucas não restauráveis.

Uma delas é transferir ao condenado a possibilidade de reparação do delito cometido. Como? “A França tem muitas estradas intransitáveis que prejudicam o comércio; os ladroes que também criam obstáculos à livre circulação das mercadorias terão que reconstruir as estradas. Seria mais eloquente do que a morte ‘o exemplo de um homem que conservamos sempre sob os olhos, cuja liberdade foi retirada e é obrigado a reparar a perde que causou à sociedade’ “. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir).

Nada mais justo. Se o bandido destruiu as estradas para obstruir e dificultar a passagem de carruagens com carregamentos de produtos comerciais, ele é que deve, ao ser preso, ter, no bojo da condenação, a ordem mandamental de que ele seja levado sob escolta, juntamente com outros infratores do mesmo delito, para reformar e consertar as estradas que eles inutilizaram para fins criminosos. Perfeito. Usar mãos de obra dos detentos seria uma equação matemática valorosa para o Estado, senão vejamos: o preso que trabalha tem sua pena remida, isto é, a cada dia trabalhando um quantum de sua pena é diminuída; segundo, o Estado não precisa fazer concessões ou licitações morosas para contratar empresas privadas para trabalhar para ele; terceiro, diminuiria consideravelmente o custo do Estado na contratação de terceiros; quarto, não existe medida mais restaurativa para a vida de uma pessoa que o trabalho. O trabalho dignifica o homem, mostra para ele uma nova realidade, uma nova chance, uma luz no fim do túnel; quinto, profissionalizaria nossos detentos, situação em que beneficiaria muitos que não tem oficio profissional para sobreviver no retorno à vida em sociedade; e, por último, mas não menos importante, seria a pedagogia da pena posta em realidade. Isto seria educar, ressocializar, corrigir, além de colaborar com o próprio juízo axiomático do detento, que olhará para si mesmo não são mais como um animal enjaulado, mas como alguém que errou e está sendo educado para não cometer novos erros. Vou além disso. Penso que, em alguns casos, poderíamos fazer com que o infrator devolva à sociedade o mal que lhe fez. Exemplo: o homicida deveria ser apenado também, além do regime prisional, a de dois em dois meses doar sangue para salvar vidas. Se o condenado puder e isso não ofender sua integridade corporal ou sua saúde, que ele saiba o valor pedagógico dessa medida: “tirei uma vida humana, mas agora estou devolvendo com minha ajuda a vida humana, mas agora estou devolvendo com minha ajuda a vida a muitas outras”. Com isso, quem sabe não humanizamos um pouco os nossos detentos? Será que a reflexão não será interessante para ele? Ele poderia pensar assim? “doei sangue, salvei duas vidas, como é importante uma vida”.E em seu retorno à sociedade ele poderia, além de continuar ajudando a salvar mais vidas com a sua doação, nunca mais tentar contra a vida de um humano. Interessante, não? É possível, basta queremos. Segundo Foucault.

Reeducação e Restauração

Como tão bem adverte Foucault: “O suporte do exemplo, agora, é a lição”.

O condenado, além de se sentir útil, fato raro nos dias atuais, ainda dará orgulho aos seus familiares, que o aguardam ao lado de fora das muralhas. Isso seria perfeito.

Como tão bem lecionava Danjou: “O salario [trabalho] faz com que se adquira ‘amor e habito’ ao trabalho; dá a esses malfeitores que ignoram a diferença entre o meu e o teu o sentido da propriedade – daquela que ganhou com o suor do rosto”.

O preso não é um peso. O preso deveria ser encarado como uma pessoa que errou e que pode ser corrigir e ser exemplo. Não vamos mais confundir preso com peso, existe um “r” importante na primeira palavra que, por linha do destino, é consoante inicial da palavra: reeducação e restauração.

Voltemos ao manancial vivo de lições de Foucault: “A ideia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores. Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeito sobre o publico. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes o vicio”.

“Cabeça vazia, oficina do diabo”, já diz o provérbio popular. Ao invés de ócio, os detentos devem respirar o hábito do trabalho, da produção, da serventia. Devem se refrescar com o vento que sopra em sua face, dizendo-os: “Vós sois úteis”. O próprio detento, com o trabalho que oferta ao poder público, pagaria a sua manutenção, que é cara, no presídio. O homem só da valor àquilo que conquista. Pedagogia da pena. Atentem para isso! Depois disso, o nosso sistema penitenciário é a melhor pós-graduação que existe no País. Os presos entram por delitos como o furto, por exemplo, e saem pós-doutores em quadrilha, tráfico de drogas, homicídios em massa. Algo está errado.

A prisão é do jeito que é hoje, inócua, porque: “[...]se eu traí meus País, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos os delitos imagináveis são punidos de maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio (CHABROUD, Ch. Archives Parlementaires. TXXXXXVI). E um remédio que não cura!

Também não pode ser apenas reparação do dano, tem que mostrar aos apenados a obrigação do trabalho que retribui e permite ao “detento melhorar o seu destino durante e depois da detenção”.

O prazo da pena é indiferente à correção dos hábitos; deixando os condenados à deriva da ocupação de se evadir e se revoltar.

Na antiga cidade norte-americana de Filadélfia, em 1796, Liancourt Rockefoucauld sugeria que os condenados fossem empregados: “[...] em trabalhos produtivos para fazê-los suportar os gastos da prisão, para não deixa-los na inação e para lhes preparar alguns recursos para o momento em que deverá cessar seu cativeiro”.

Não somos contrário à pena de prisão, pelo oposto, concordamos que a prisão é a “pena das sociedades civilizadas”.

Como preconizava Foucault: “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão e sabe-se que ela é perigosa, quando não inútil. Entretanto, não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. Em outras palavras, é o mal necessário. Melhor a punição da liberdade, do que a punição corporal ou capital. É um avanço, mas, ainda assim, possui máculas corrigíveis.

Um exemplo de mácula corrigível se dá na catalogação dos presos em virtude de seus delitos. É inconcebível se colocar, na mesma cela ou pavilhão, um traficante e homicida com um simples furtador contumaz. “Não se pode permitir que o indivíduo condenado a penas leves se encontre preso no mesmo local que o criminoso condenado a penas mais graves” (Motisfs du Code d’instruction Criminelle).

NOVA CHANCE

A educação é, de forma insofismável, a melhor prática para diminuirmos os delitos e os crimes cometidos em nossa comunidade. Esta educação deve começar no inicio da vida humana, ainda na fase infante. Recordo-me de pensamento do incrível jurista Pontes de Mirando sobre o assunto: “Preparemos todas as crianças em idade escolar, alinhemo-las todas, no mesmo ponto de partida! Só assim daremos a todas as mesmas possibilidades; só assim faremos obra de justiça social, de cooperação legal e de fraternidade”. Esse é o caminho. Educação de qualidade é demonstrar, na prática, a existência da luz solar sobre a sociedade. Basta-nos abrir a janela pela manhã, na aurorara, que veremos o sol brilhar para todos. Investir em educação é o mesmo que dizer que todos terão as mesmas oportunidades da mesma forma que o sol brilha para o rico e para o pobre.

Referências

BECARRIA,Cesare. Dos delitos e das Penas.

CHABROUD,Ch. Archives Parlamentaires, p618.

DANJOU. Des Prisions. 1821, p210

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 40 ed. Petrópolis: Vozes,2012, p118

LANGRES,Trois Ordres. In:FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 40 ed

MABLY G. de lá legislation. Ouevres Completes. 1789, p236

RiBEIRO,Roberto Victor Pereira. O julgamento de Jesus Cristo sob a luz do Direito. São Paulo. Pilares,2010.

Julgamento de Sócrates sob a luz do Direito. São Paulo: Pillares,2010.

ROSSI. Traité de Doit Pénal. VOl. III, 1829, pg 16.

Mofis du Code’ d instruction Criminelle, p 244.

ROUSSEAU. J J. O contrato social. Martin Claret, 2010.


 
 
 

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